

Desde 2020, o mundo do trabalho vem sendo reconfigurado. O que começou como uma resposta emergencial à pandemia tornou-se, para muitas organizações, um ponto de inflexão. Modelos antes considerados inegociáveis foram substituídos por novas formas de operar e, junto com elas, emergiram novas possibilidades e também novas dores.

Uma matéria recente do G1 traz o exemplo do Nubank, que optou por uma regra híbrida: a cada sete semanas de home office, uma semana presencial. A Amazon, por sua vez, determinou o retorno constante ao escritório.
Com o avanço desses movimentos, surge uma questão que muitas lideranças estão se fazendo: como encontrar o ponto de equilíbrio entre trabalho em equipe e individual, cobrança e autonomia, produtividade virtual e produtividade presencial?

Essas perguntas, embora pareçam logísticas, são também estratégicas, culturais e emocionais. E seu impacto é direto, tanto para quem lidera quanto para quem faz a entrega.
Ao longo de mais de duas décadas à frente da Plena Mente, acompanhando líderes de empresas multinacionais e regionais, percebo com nitidez duas dores que se tornaram centrais no cenário pós-pandemia: a dor de voltar e a dor de permanecer.
A dor de voltar

Para muitos profissionais, o retorno ao ambiente físico representa:
• Horas perdidas no trânsito.
• Menor autonomia sobre o tempo.
• Ruptura de uma rotina familiar redesenhada nos últimos anos.
• Reintegração a ambientes que ainda não cultivam escuta ou segurança psicológica.
• Sensação de vigilância e microgestão.
Como Edgard Schein previu, a âncora de carreira estilo de vida se fortaleceu. Especialmente entre os mais jovens, há uma valorização crescente da integração entre vida pessoal e trabalho, sem cisões artificiais.
Por isso, o retorno mal conduzido pode provocar frustração. Muitos sentem que uma conquista relevante, a flexibilidade, está sendo desconsiderada em nome de uma normalidade que, na prática, nunca funcionou tão bem.
A dor de permanecer

O trabalho remoto ou híbrido também trouxe desafios legítimos:
• Sensação de isolamento e empobrecimento relacional.
• Perda dos rituais informais que sustentavam a cultura.
• Limites mais difusos entre tempo pessoal e profissional.
• Comunicação mais técnica e menos relacional, tudo mais direto ao ponto.
• Sensação de estar sempre disponível, com poucas pausas reais.
Além disso, esse modelo exige uma maturidade emocional mais sofisticada. É mais fácil evitar conflitos, esconder-se atrás de uma câmera desligada ou atuar de forma mais funcional do que conectada, perdendo conexão com o propósito.

Também impõe uma transição constante entre múltiplas realidades: um problema doméstico é interrompido por uma reunião de resultados. Uma entrega de relatório é feita enquanto o cachorro late. E assim seguimos, muitas vezes sem o espaço psíquico necessário para uma presença plena — ou para cuidar da própria saúde mental, que se fragiliza diante da ausência de limites e rituais de desligamento.
Para as empresas, há vantagens claras: redução de custos com espaços físicos, maior agilidade na comunicação formal e acesso ampliado a talentos. Mas também há desafios mais sutis: manter a coesão, comunicar com sentido, regenerar vínculos e tomar decisões com profundidade em ambientes mais dispersos.
Fonte: https://www.istockphoto.com/br/fotos/pessoas-trabalhando
As pesquisas confirmam o cenário
Estudos recentes da Fundação Dom Cabral apontam duas conclusões relevantes:
1. O fim unilateral do trabalho remoto aumentou as demissões voluntárias.
Profissionais deixaram organizações que impuseram o retorno sem adaptação. O motivo não foi apenas a localização, mas o sentimento de limitação à autonomia, à confiança e ao equilíbrio pessoal.
2. O trabalho remoto, por si só, não enfraquece a cultura.
O que fragiliza a cultura é a ausência de clareza sobre os valores vividos, a baixa identificação dos colaboradores e estilos de liderança excessivamente centrados em controle.
Como afirma Vitor Cavalcanti, mestre em Administração pela FDC:
“Cultura e conexão não dependem só de presença física. O que sustenta uma cultura forte são práticas coerentes, inclusão ativa e liderança com foco em pertencimento.”
Refs: https://sejarelevante.fdc.org.br/fim-do-trabalho-remoto-acelera-demissao-voluntaria/
O desafio é mais profundo

A pergunta não deveria ser apenas “voltar ou permanecer remoto”. O que vale investigar com honestidade é: o modelo que estamos praticando hoje está alinhado com a cultura que desejamos construir?
Uma cultura forte não depende apenas da presença física. Mas também não se sustenta apenas com autonomia e entregas. Ela precisa de vivências compartilhadas, rituais consistentes e conexões que deixem marcas na memória coletiva do time.
Momentos presenciais bem planejados são insubstituíveis para construir laços, resolver impasses e fortalecer a confiança. Mas esses momentos precisam ser intencionais, e não apenas marcados no calendário.
E há caminhos concretos sendo testados
Empresas como a Natura têm demonstrado que é possível orquestrar modelos híbridos de forma regenerativa, ajustando formatos, online, híbrido e presencial, conforme a realidade de cada área. Mais do que políticas, trata-se de postura: escuta ativa, experimentação e compromisso real com o bem-estar como valor institucional, não como narrativa. A Natura tem se dedicado a redesenhar os motivos do encontro, com foco em colaboração, criatividade e saúde relacional. Essa abordagem vem se mostrando mais efetiva do que regras fixas.
O papel da liderança

O que se pede agora da liderança não é apenas a escolha de um modelo operacional. É um reposicionamento mais amplo. É refletir sobre o que de fato sustenta resultados com vínculo.
Para manter viva uma cultura em tempos híbridos, alguns elementos tornam-se ainda mais centrais:
• Fortalecer identidade e senso de pertencimento.
Práticas como storytelling, rituais, mentorias e escuta ativa seguem como pilares da cultura.
• Criar redes relacionais intencionais.
Os encontros híbridos devem ter propósito claro, cuidado genuíno e espaço para trocas significativas.
• Garantir estrutura e liberdade na medida certa.
Não se trata de controle ou soltar demais. É sobre criar ambiente com direção, confiança e espaço para respirar.
E o que fazer agora?

Ao pensar o modelo ideal, é importante escutar a realidade atual da equipe e demonstrar a realidade da empresa. Conversas com perguntas reais, feitas com interesse genuíno e abertura para transformar:
- O que o time precisa neste momento?
- Mais convivência presencial?
- Momentos específicos que promovam coerência relacional e significado compartilhado?
- Em que situações a presença fortalece? Em que contextos a liberdade individual funciona melhor?
- Estamos cultivando confiança e escuta nas formas como nos encontramos?
Essas são perguntas estratégicas. E a liderança que se dispõe a fazê-las com honestidade tem mais chance de construir um futuro organizacional viável, maduro e inspirador.
A solução híbrida parece ter vindo para ficar, mas o formato híbrido, por si só, não resolverá os desafios da cultura.
Nos últimos anos, houve entusiasmo com a ideia de nos tornarmos nômades digitais em tempo integral. Para alguns, essa foi uma transição possível. Mas, na maioria dos casos, percebemos que conexão digital não é sinônimo de presença relacional e trabalho em time.
O que transforma mesmo é a escuta madura, a presença intencional e a vontade de ajustar o que já não serve.
Não é sobre onde estamos. É sobre como nos conectamos. E o que estamos realmente construindo juntos.
E se nada for feito?

Ignorar esse dilema não é neutro. O custo da inação aparece de forma sutil, mas progressiva:
• Aumento da rotatividade.
• Queda na energia relacional dos times.
• Dificuldade em reter talentos estratégicos.
• Fragmentação cultural que mina a performance de longo prazo.
A pergunta que precisa ser feita, por você e em cada one-on-one, é simples e definitiva:
Sua liderança está presente no que realmente importa?
Te convido a refletir sobre.
Ana Lícia Reis
Mentora de Liderança Estratégica Regenerativa, CEO da Plena Mente DHO, especialista em Cultura, Presença e Performance Sustentável.